A Judicialização Cristã

Este texto partiu de uma reflexão, depois da notícia recente em que a Justiça determinou à igreja Universal a devolução de cerca de 200 mil doados por fiel que afirmou ser coagida a fazer contribuição para obter lugar no céu.

Lembrei também de certa vez uma notícia, em que certo pastor de uma determinada Igreja foi pego no ato de um suposto adultério. Eram três horas da manhã quando foi flagrado na casa de uma outra mulher, que não era sua esposa. Eu o conhecia. Um pastor respeitado até então, mas, sua infundada desculpa era que estava dando ensinamentos bíblicos para a referida mulher, que morava sozinha.

Ao ser indagado por seus superiores, o pastor ameaçou bater nas portas da justiça, caso não provassem o “tal adultério”. Eu não soube mais notícias do desenrolar do caso.

É importante saber que adultério, não é mais considerado crime pelo nosso ordenamento jurídico. Tal crime, antes previsto no art. 240 do Código Penal, foi revogado pela Lei nº 11.106/2005. Porém, os reflexos que o ato de adultério pode causar, ainda são punidos civilmente, caso haja interessados ou quem haja sofrido qualquer tipo de dano com isso.

Alguém que jurou fidelidade à sua associação, foi prestigiado com um grau de confiança tal, a ponto de estar agora na frente ensinando as regras e coordenando trabalhos, descumpre as próprias regras que ensinava, e quer exigir direitos? Seus superiores questionavam adultério, ou de descumprir as regras da associação da qual fazia parte?

Não quero entrar no mérito institucional de cada denominação, porém, abster-se de longos e desnecessários comentários, e analisar, por ora, apenas de forma genérica.

Se por algum motivo, seja qual for, decidirmos fazer parte de uma religião, instituição, seita, ou qualquer associação, da qual engrenhamos a intenção em resguardar direitos religiosos através do poder do Estado, penso, seria bem melhor que nem se fizesse parte.

Alexandre Henrique Gruszynski, na introdução de sua obra Direito Eclesiástico I, esclarece que:

“A Igreja na sua totalidade não pode ser bem entendida e interpretada quando observada de fora, através dos diferentes aspectos que apresenta: históricos, sociológicos, culturais, filosóficos, jurídicos, espirituais, etc. Quem a observar apenas fenomenologicamente – como historiador, sociológico, jurista ou filosófico – não chegará a captar suas notas essenciais. Com efeito, as diferentes facetas que apresenta, olhadas exclusivamente sob o ângulo duma determinada ciência, poderiam dar lugar a interpretações fragmentárias. E estas, quando se pretendam elevar a lei geral, facilmente chegam desvirtuar a verdade total. Tal aconteceria se, como alguns pretenderam, considerássemos a Igreja como fruto dum aperfeiçoamento das religiões pré-cristãs, ou como suporte de uma doutrina filosófica, ou como apêndice natural de uma concepção de vida ligada a um espaço e a um tempo histórico, ou como superestrutura dum determinado sistema econômico, ou como uma simples instituição do Direito.”

Certo de que a própria Constituição Federal nos preserva um direito no seu art. 5º, sobre a liberdade de consciência de crença religiosa, então, não existe uma obrigatoriedade de permanência nesta ou naquela instituição.

Logicamente que a questão da fé e da crença na verdade, é imutável, e, a partir do momento que cada um é convencido e persuadido dos ensinamentos dessa instituição, cria-se no sujeito, o afeto e confiança à sua denominação. Em muitos casos, mesmo se o ensinamento parece absurdo.

A regra deveria ser que uma associação religiosa, qualquer que seja, deveria implicar em confiança mútua e não poder policial do Estado. O próprio Jesus, no livro de Mateus 12:25 disse que “todo reino dividido entre si mesmo é devastado, e toda cidade ou casa, dividida contra si mesma não subsistirá”.

Porém, como disse o juiz NEDIR VEREDA MORAES, “o judiciário não pode deixar de enfrentar toda e qualquer questão trazida à apreciação”. É a regra esculpida no Art. 5º, XXXV da Carta Magna.

Em minuciosa pesquisa nos sites dos tribunais, o que vemos é muitos cristãos aproveitando a facilidade às portas da justiça, mesmo por motivos fúteis. Prova-se nas palavras do juiz JOSÉ RICARDO RIZK, no acórdão do Rec. Ord. Nº 2.029/1998 Tr. Reg. Trab. – 17ª R., que diz: “Quando uma questão como esta nos é submetida, a primeira reação é de incredulidade e, até mesmo um certo desprezo por aquela pessoa que, eivada de mesquinhez, ousa ‘alimentar o corpo onde alimenta a alma’, contrariando o mais elementar dos ensinamentos religiosos”.

Por outro lado, com o aumento exponencial de astúcias de certas denominações, como dito alhures, mediante persuasão, com promessas aberrantes, absurdas, o acesso à justiça se torna de certa forma, regra.

Desde sempre, sou totalmente a favor que não só cristãos, mas qualquer um que tenha seus direitos turbados, busquem auxílio na justiça, aliás, como cristão, e sob o espeque cristão, “toda autoridade foi constituída por Deus”, como vemos no livro de Romanos 13:1.

Todo estudioso já deve ter deparado com os ensinamentos que o apóstolo Paulo deixou na primeira carta aos Coríntios, capítulo 6. Os onze primeiros capítulos traz palavras impactantes, que mostra a sabedoria que o povo cristão deveria exercer, como deveriam comportar-se nestes casos ante a sociedade.

Dentre eles, quando questionado sobre questões judiciais, São Paulo pergunta se “não há nem ao menos um sábio que possa julgar, resolver os problemas, sem que precise levar questões de um irmão contra outro, perante incrédulos[i]”. É a corrente que muitos líderes ainda preferem ensinar.

De certa forma, São Paulo já pregava o que o novo CPC (não tão novo mais) inovou ao estimular a resolução de conflitos na esfera extrajudicial, como forma de combater o excesso de litigiosidade.

Feitas essas considerações genéricas, a conclusão, parafraseando Jayme Weingartner Neto, em sua obra “Liberdade Religiosa na Constituição”, é que a religião funcionou, durante muito tempo e bem, como poderoso instrumento de coesão social. Não eram raras as vezes, até pouco tempo atrás, que o termo cristão e religioso era considerado sinônimo de correto e justo.

A liberdade religiosa secularizada[ii] trouxe excessos, tanto por parte dos fiéis quanto pelos líderes que se aproveitam da suposta autodeterminação, trazendo aproximação do judiciário a limitar tais absurdos.

 

Gustavo Pereira Andrade

 Advogado e Procurador Geral do município de Juruaia

 

[i] Os cristãos denominam incrédulos quem não faz parte de sua denominação.
[ii] A autora Maria Paula Lara Rezende, em sua obra “Crucifixo em repartições públicas – os limites da garantia de liberdade no Estado laico brasileiro cita BERGER ao definir que “A secularização se define, sobretudo, pelo enfraquecimento da religião, pelo dano em sua postura basilar e pela própria autossuficiência da sociedade em diferentes âmbitos. A religião dos tempos modernos vê sua rigidez e domínio serem diminuídos pela privacidade e atividades costumeiras dos indivíduos”.