Celebramos nesse dia dois de novembro a comemoração de todos os fiéis defuntos. Esta é uma instituição da Igreja católica, iniciada por Odilon, Abade de Cleny (França), por volta do ano mil d.C, quando uniu a liturgia em sufrágio dos defuntos – isto é, a rogação à Deus pelos falecidos que padecem – com a solenidade de Todos os santos e santas de Deus.
Se no dia primeiro de novembro a Igreja lembra todos os bem-aventurados que já triunfam da visão beatífica diante de Deus, no dia dois rezamos por todos aqueles que levaram uma vida santa, ou não, mas que agora se encontram com o mesmo e o único Princípio e Fim.
Esta comemoração se espalhou para toda a Igreja Latina a partir do século XV, e o Papa Bento XV, diante dos horrores da Primeira Guerra Mundial, estendeu a observância a toda Igreja.
Na liturgia deste dia, o padre se paramenta de roxo, cor litúrgica da penitência e vigilância, e ressoa o introito: “Requiem aeternam dona eis, Domine, et lux perpetua luceat eis” (Descanso eterno dai-lhes, Senhor; e a luz perpétua os ilumine – Apócrifo IV Esdras 2, 34). Com a reforma litúrgica de 1962, se ressalta a fé na ressurreição e a esperança da Vida Eterna, fundamentada no batismo recebido, e soma-se a estas intenções orações pelos vivos, clamando que Deus “aumente em nós a nossa fé no Cristo Ressuscitado, para que seja mais viva nossa esperança na ressurreição”.
Contudo, cabe-nos perguntar:
Por que celebrar o dia, popularmente chamado, dos mortos?
Acaso podemos interferir naquilo que já foi o juízo Divino?
Qual o sentido de rezar o mistério da morte?
A tradição católica lembra que nossas preces podem auxiliar aqueles que estão em um estado chamado purgatório, o qual não é um momento de castigo, mas de purificação daqueles que já tiveram o seu encontro pessoal com o Eterno, e agora, aguardam na eternidade o Dia Final. Nós, com nossas súplicas, podemos atenuar ou abreviar este estado mistérico de tempo.
A base para tais afirmações parte do fato de que Nosso Senhor Jesus Cristo, outorgou a Pedro e a sua comunidade, o poder de ligar e desligar conforme Mateus 16,19 ou Jo 21, 17. A Igreja desenvolveu sua teologia a partir de II Macabeus 12, 43-45:
“(Judas Macabeu),
organizou uma coleta, enviando a Jerusalém cerca de dez mil dracmas para que se oferecesse um sacrifício pelos pecados.
bene et religiose de resurrectione cogitans
(Belo e santo modo de agir)
decorrente de sua crença na ressurreição!”
Pois, se ele não julgasse que os mortos ressuscitariam, teria sido vão e supérfluo rezar por eles.”
E outra referências como Lc 12,45-48 e 12,58-59; Mt 5, 22-26; 1Pe 3,18-19 e 4,6, onde pode-se ler “Também aos mortos ele – Cristo – foi anunciar o Evangelho, para que mesmo julgados à maneira humana na carne, eles pudessem viver segundo Deus no Espírito.
Uma vez nesse estado purificatório, o sacrifício, a oração e súplica à Deus, podem favorecer aqueles que já vive um processo da morte. Para entender isso, é necessário conhecer o conceito de Comunhão dos Santos, isto é, saber que formam uma só Igreja aqueles que já triunfam da visão beatífica (os Santos, a Igreja triunfante), os que já viveram o mistério da morte, mas ainda precisam purificar as penas de seus pecados (Igreja padecente) e nós que ainda estamos em caminho (Igreja militante).
Por isso, estamos em comunhão! E como a Igreja é o único Corpo de Cristo (Rm 12, 4-5, Cor 12, 27; Ef. 4), e como neste corpo cada membro é importante, aquilo que a Igreja militante oferta atinge todo corpo de Cristo. Entendemos bem o que escreveu Paulo aos Colossenses: “alegro-me em meus sofrimentos, e completo no meu corpo o que resta das aflições de Cristo, em favor do seu corpo, que é a Igreja”
O sentido de rezar o mistério da morte, não é unicamente para ofertarmos súplicas pela salvação daqueles que já morreram, mas lembrar que também nós morreremos. Sim! Nós morreremos! Somos rio que corre para o Mar! Um dia chegaremos nos braços de Deus. O mistério da morte nos lembra que o maior presente e recompensa será nossa chegada na casa do Pai, como a parábola do Filho Pródigo (Lucas 15, 11), e meditar sobre a morte lembra-nos que somos frágeis. Por mais que queiramos, não compensa fazer de nossa vida apenas este instante de temporalidade. Refletir sobre a morte é caminhar com os olhos voltados para o céu, e os túmulos de nossos amigos e falecidos não são pontos finais, mas, como aprendemos na escola, são “parágrafo e travessão”, já que a partir dali se inicia um novo capítulo, ou o Grande Capítulo de nossa existência.
Uma vez vividos, dia após dia, somos então convidados a darmos cor ao rascunho que que fizemos e tom a ópera que ensaiamos. Diante de Deus, teremos a oportunidade de dizer: “sim, quero ficar na tua presença”, ou “não, eu não consigo te aceitar”!
Surge então a ideia do inferno. Aprendamos: Deus não manda ninguém para o inferno! O inferno é o estado de total ausência de Deus! Estado este que a própria pessoa escolhe! E não de forma racional, na “malandragem”, mas de forma vivencial, ou seja, se desde já vivemos com os olhos voltados para a eternidade, orientamos nosso coração para a casa, para a comunidade e a verdade que procede de Deus, naquele último e belo dia, o nosso ser, tal como fagulha que sobe aos céus, aspirará e se unirá intrinsicamente e naturalmente ao Senhor da Vida.
Tanto é que, corretamente, dizemos que hoje é a comemoração dos fiéis defuntos, isto é, dia de oração por aqueles que se mantiveram fiéis, já faleceram, e anseiam pela eternidade, com um desejo tão intenso que chegar a doer, queimar, não no fogo, mas queimar de amor, o qual deve ser mesmo
…fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.
Hoje não é Dia dos Mortos ou Finados (palavra que vem do latim Finis, e significa fim, finalizado), pois “Deus não é Deus dos mortos, mas dos vivos, pois todos vivem para ele. Nós não celebramos a morte. Celebramos a vida que se inicia após a morte! Parece estranho. Mas isso é o que fazemos muitas vezes durante o ano: quando se comemora o aniversário de algum, na verdade não se comemora justamente a vida depois da geração no útero?
“Exaltamos esse dia, pois por Jesus Cristo,
brilhou para nós a esperança da feliz e da Ressurreição!
E aos que a certeza da morte entristece,
a promessa da imortalidade consola!
Senhor, para os que creem em vós, a vida não é tirada,
mas é transformada!
E desfeito nosso corpo mortal,
nos é dado nos céus, um corpo imperecível”
Assim reza o prefácio I dos fiéis defuntos. Sim meus caros, enquanto esperamos a realização das promessas de Cristo para nós, com os Anjos e todos os Santos, bendigamos ao Senhor, e aguardemos ansiosos, o dia em formos convidados a estar na presença dele! Orientemos nossa vida, para a casa do Senhor, nos esforcemos de forma humana e sobre-humana, até o cansaço, até o sangue se for necessário, para estarmos na presença de Deus:
Pois mais perto eu quero estar
Meu Deus, de ti
Ainda que seja a dor
Que me una a ti
Sempre hei de suplicar
Mais perto eu quero estar
Mais perto eu quero estar
Meu Deus, de ti
Assim canta a poetisa inglesa protestante Sarah Flower Adams. De fato não somos “gado gordo que caminha para o abate” (Sl 48/49 13 – liturgia das horas), mas Filhos: “Vede que grande presente de amor o Pai nos deu: de sermos chamados filhos de Deus! E nós o somos” (IJo3,1) “filii Dei sumus”, e estamos voltando para casa!
Padre Dione Piza
Pároco na Paróquia São Sebastião em Juruaia/MG
Fotos:
Arquivo Pessoal
Arquidiocese de Londrina