Por ter nascido em um berço cristão (evangélico), e assim ter sido ensinado com princípios da doutrina cristã, fazendo parte da minha formação, em muitos dos meus textos gosto de tecer comparações com o “mundo cristão”, para ao menos tentar tornar a leitura diferente de uma busca no google ou pesquisa científica em algum acervo jurídico.
É claro que deve-se levar ao atento leitor do “ad judicia” informações mais perto das questões jurídicas, sob pena de desvirtuação da coluna, visto que há grandes nomes para cada área específica neste importante site!
Em nossa estreia, já trouxemos um assunto relacionado à forma hodierna que cristãos tem tratado seus interesses enquanto igreja, em relação ao direito de acesso à justiça.
Até preparávamos outro assunto, mais técnico-informativo, porém, com a notícia recente da concessão, pelo presidente da República, da chamada “graça” a um deputado condenado pelo STF, foi irresistível não vir à tona para pincelar, de uma forma não exaustiva, muito menos política, nem religiosa, o instituto da “graça”.
A intenção não é engajar em uma discussão jurídica que, na verdade, pouco interessa. Neste humilde espaço, não nos interessa se a finalidade do decreto foi constitucional ou não (e sendo ou não, não suspenderia a inelegibilidade do deputado condenado). Não nos interessa discutir absurdos, que na verdade, quando assim discutidos, absurdos da vez são cada vez mais absurdos que os anteriores, e sempre será assim: próximos absurdos jurídicos e políticos, sendo mais absurdos que os sucedidos.
Por mais que não queiramos discutir essas situações, tem-se que conseguiram ditar a pauta: todos discutindo o decreto. Alguns fazendo ressalvas à condenação de quem incitou a destruição da democracia, outros apenas apoiando lado e outro. E porque não entrarmos na pauta, mas de um jeito diferente?
Gilberto Garcia, mestre em Direito e presidente da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa do IAB – Instituto dos Advogados Brasileiros diz que “existem mais que semelhanças entre as leis brasileiras que regem o sistema jurídico nacional e o livro sagrado”, doutrinando que este foi uma fonte de variados preceitos legais vigentes em nosso país.
Dentre exemplos disso, ele cita:
“Direito Constitucional: “Ele [o rei] deve vir dentre os seus próprios irmãos israelitas. Não coloquem um estrangeiro como rei, alguém que não seja israelita. (Deuteronômio 17.15b).” – Art.12, §3º., I: “São privativos de brasileiro nato os cargos de presidente e vice-presidente da República.”, Constituição Federal (CF); e, “Não amaldiçoem o surdo nem ponham pedra de tropeço à frente do cego, mas temam o seu Deus. Eu sou o Senhor.” Levítico 19:14 – “A lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais.” Art. 5º, XLI – CF.
E, ainda, no Direito Constitucional: “O estrangeiro residente que viver com vocês deverá ser tratado como o natural da terra”, Levítico 19:34 – “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros”, Art. 5º, CF; Não mudem as marcas de divisa da propriedade do seu vizinho, que os seus antecessores colocaram na herança, Deuteronômio 19:14 – “É garantido o direito de propriedade”, Art. 5º XXII, CF; “O sacerdote ordenará que desocupem a casa para que nada que houver na casa se torne impuro”, Levítico 14:36 – “A lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social”, Art. 5º, XXIV, CF.
Já no Direito Civil temos variados institutos, pelo que, citamos alguns exemplos: “Nomeiem juízes e oficiais para cada uma de suas tribos em todas as cidades que o Senhor, o seu Deus, lhes dá, para que eles julguem o povo com justiça”, Deuteronômio 16:18 – Art. 5º, Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, Lei 12.376/2010, “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”; “Não darás falso testemunho contra teu próximo”, Êxodo 20:16 – “A indenização por injúria ou calúnia consistirá na reparação do dano que delas resulte ao ofendido”, Art. 953, Código Civil, dentre outros inúmeros exemplos.”
Não se pode afirmar que o instituto da “graça” (indulto) tem a mesma definição em comparação. Porém, quanto à finalidade, nada mais fluente para fundamentar um sermão, a explicar a graça (indulto) através do significado da “Graça” cristã.
Conforme relatado pela advogada Thaís Pinhata de Souza, como direito, o instituto da graça perambulou entre Oriente e Ocidente, registrada em diferentes códigos, mas com definições delineadas entre os antigos romanos, que mediante provocação do povo, poderia ser concedida pelo povo através das cúrias (1), não sendo submetida mesmo à Assembleia Popular para quaisquer revisão ou alteração da decisão. Relata a advogada que tão intensa foi, que o instituto da graça chegou a ser concedido até àqueles criminosos condenados ao exílio, chegando aos condenados por crimes comuns ou mesmo por crimes políticos de lesa-pátria.
Com o passar dos séculos, a graça ganhou outros contornos, passando a ser considerada um símbolo dos poderes monárquicos, já que eram os reis os únicos capazes de desfazer as decisões tomadas pelos tribunais da modernidade.
Montesquieu, em seu clássico “Espírito das Leis”, relatou que a clemência seria a qualidade distintiva das monarquias.
No Brasil, alguns defendem que o instituto da graça chega já em sua fundação. Os dispostos a lutarem contra invasores e rebeldes recebiam dos governos gerais o perdão por quaisquer faltas penais que houvessem cometido aqui ou no além-mar. A graça era assim um ato de indulgência tido na forma simples da comutação de penas, porém condicionada.
Hodiernamente, a graça (chamada constitucional, porém, com efeitos sentidos no direito penal) é uma das modalidades de perdão de pena, prevista no ordenamento jurídico brasileiro, tendo como consequência a extinção da punibilidade (art. 107, II, Código Penal) que se presta a aniquilar os efeitos da condenação criminal, portanto, não abolindo demais consequências da pena.
Tem por objetivo crimes comuns, visando o benefício de pessoa determinada.
É ato privativo e discricionário do Presidente da República, como dita o art. 84, XII da Constituição Federal.
É importante mencionar o ensinamento de Fernando Capez, em sua obra “curso de Direito Penal”, que a Constituição Federal não se refere mais à graça, mas apenas ao indulto, porém, a Lei de Execuções Penais (Lei 7.210/84) passou a considerar a graça como indulto individual.
Mas o que quero frisar aqui é a característica desse indulto individual (graça) que trata a Lei: Ela pode ser solicitada pelo condenado, pelo Ministério Público, pelo Conselho Penitenciário ou pela Autoridade administrativa.
As únicas exceções para concessão do instituto da graça, está no próprio texto da Constituição, em seu art. 5º, XLIII, que determinou à Lei considerar a prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, insuscetíveis de graça e anistia, além de inafiançáveis. A regulamentação se deu com a Lei 8.072/90, incluindo na lista os crimes hediondos.
Ou seja: a graça concedida pelo presidente é limitada. Com morais e humanas razões, ante as razões políticas e pessoais. Outros preferem doutrinar que o chefe de Estado está vinculado a outras questões que não apenas suas vontades individuais, devendo respeitar as conquistas constitucionais de seu povo, que deve se traduzir no perdão como medida de contrapeso aos excessos judiciais, independente de contra quem estes venham a ocorrer e fazê-lo, demanda, por certo, mais que a mera vontade pessoal daquele que ocupa o Palácio do Planalto.
Já a Graça cristã, no âmbito da teologia, consiste num benefício gratuito, sem qualquer restrição, onde, através dela, Deus concederia ao homem, simplesmente por sua rendição, sem considerar seu passado ou pecado, a participação na vida divina, além de sua salvação.
São Paulo, na carta aos Efésios (2:8-9) diz que não há nenhum mérito do homem. Escrevendo aos Romanos (3.24) o apóstolo Paulo refere-se à justificação gratuita. O mesmo apóstolo escreveu aos Coríntios (2ª carta, Cap. 12), relatando um encontro do Deus, que ouvia algumas de suas reclamações, e teve como resposta a transcendência dos benefícios da graça. Não há nenhuma condicionante para a Graça cristã.
Nessa quase sem graça comparação, há uma conclusão de que a Graça é mais ampla que a graça. Na Graça não há interesses. A Graça limpa culpa, a graça, apenas a punibilidade penal. A Graça, é realmente de graça, a graça, nem tanto.
Gustavo Pereira Andrade
Advogado e Procurador Geral do município de Juruaia
1 Cúria, na Roma Antiga, era a parte da estrutura social que era composta pela reunião de algumas famílias, como nas fratrias da Grécia, caracterizadas pela existência de um chefe, denominado curião.
Foto: Arquivo Pessoal
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